Seminário Literário 2010.

Bom, novamente O Melhor Conto do Seminário Literário. Então, sem delongas, aqui vai o conto para quem deseja ler:

Olhos de Lince

Desperto, abro os olhos, já não vejo metade das coisas que aqui havia, no passado. Chego de uma longa viagem. Não só longa pela estrada distante, mas longa, também, pelos anos que nos separam. Lembro-me, como se fosse ontem, da minha velha infância vivenciada aqui, nesta casa onde espaço para brincar, correr e se acomodar é o que não faltava e, de fato, não falta. Os aconchegantes leitos eram ocupados por crianças que, assim como eu, não tinham o amparo da família e ali estavam a aguardar o aparecimento de almas caridosas que quisessem nos levar, nos cuidar e chamar-nos de filhos. Tratava-se de um orfanato. Quando mais jovem, por circunstâncias as quais desejaria esquecer, fui obrigada a abandonar o local.
Chamo-me Leah Steinberg, filha de David e Rebeka Steinberg, mortos por soldados nazistas quando eu ainda estava aprendendo os rudimentos do yiddish, o dialeto pelo qual muitos judeus com origens no leste da Europa se comunicam até hoje.
São apenas flashes que povoam as minhas memórias. Imagens de quando mame ensinava-me a acender as velas de Shabat e a como recitar as preces. Mas uma coisa continua bastante viva ao ponto de poder senti-la a cada vez que a saudade de minha família parece dilacerar-me: o cheiro especial da chalah, o pão trançado que minha mãe preparava a cada final de semana.
Após a morte de meus pais, disseram que fui acometida de alguma psicose. É certo que até hoje não consigo dizer como cheguei ao orfanato da família Blumenthal.
Jacob e Esther Blumenthal foram, depois de meus amados pais de bendita memória, as pessoas que mais me ajudaram na aventura de reconstruir o que fui, a fim de traçar as minhas próprias resoluções de vida.
Os donos do orfanato, assim que cheguei, souberam desde logo, a minha origem judaica. Não foi difícil me acostumar àquilo que Jacob e Esther nos ensinavam, nem à vida em Heidelberg, mesmo tendo nascido em Berlim. Em verdade, vagamente me recordo que ainda tive a chance de passar um tempo em Heidelberg na companhia de meus pais, antes que eles fossem deportados para um campo de concentração na França.
Aos poucos, fui tomando consciência do novo modo de vida que tomava forma: o de comunidade e solidariedade entre todos aqueles que faziam o Orfanato Blumenthal.
As lembranças até então engavetadas passaram a desabrochar como rosas em plena primavera, graças ao ambiente amoroso em que me encontrava.
O Orfanato Blumenthal era habitado não apenas por judeus, o que, por si só, gerava uma situação de tolerância religiosa inimaginável em plena II Guerra Mundial. Para que não fôssemos pegos de surpresa, todas as crianças judias recebiam uma educação religiosa paralela, ditada pelos costumes católicos. As orações cristãs eram até mais recitadas por nós que as propriamente judaicas. Era uma questão de sobrevivência.
Algo que também nos era ensinado era criar uma linhagem fictícia na qual não constasse nenhuma referência a nomes judaicos nem sobrenomes que tivessem sido adotados por judeus nos vários países assolados pela tirania de Hitler. Igualmente nos era comum o tratamento por nomes tipicamente alemães como Theodor, Franz e Greta. Era apenas outra forma de garantir mais um nascer do sol.
Como acontece com todas as crianças, recebi um apelido que me fazia sentir ofendida até o dia em que descobri do que realmente se tratava. Diziam-me “olhos de lince”. Foi preciso que Avigdor Wurman, judeu de origem polonesa, me explicasse que os linces tinham uma visão muito apurada, eram animais ágeis, fortes, sagazes, além de terem olhos de tom esverdeado como os meus. Pensando bem, talvez essa alcunha realmente se encaixasse comigo.
Avigdor passou a ser o meu melhor amigo. Tínhamos muito em comum. Ele era ruivo e estava começando a ter barba, tinha 16 anos e sempre que podia, estudava o Talmud e a Torah e os ensinava aos menores com bastante autoridade. Tinha um porte elegante e gostava de usar suspensórios. Nunca fui alguém de sonhar, mas é certo que Avigdor, facilmente, se transformou no homem dos meus sonhos. Brincávamos com uma famosa frase de Beethoven, a qual escrevíamos em locais ocultos para que o outro a encontrasse. Tal frase resumia a nossa relação de cumplicidade.
Os meses passavam com uma efemeridade atípica. Comecei a ficar preocupada com o que me aconteceria se atingisse a maioridade e jamais fosse adotada por uma família. Teria de deixar o Orfanato Blumenthal para enfrentar, de peito aberto, os escombros de uma Alemanha assombrada pelas abomináveis matanças da II Guerra Mundial.
Já contava com 15 anos quando Esther acordou-me com um beijo recheado de despedida. Não imaginei que seria a última vez que aquela cândida mulher tocaria-me a tez. Fios de lágrimas ousaram cair em seu rosto bondoso.
- São eles, querida! - Esther proferiu, tomando-me em seus braços calorosos. - Corra o máximo que puder, vá embora!
O tempo dado a mim para compreender do que se tratava foi curto. Logo as vozes masculinas invadiram o âmbito juntamente ao ensurdecedor barulho de pólvora. Tínhamos conhecimento da teia política que envolvia todos os países do continente europeu. Pude saber, de cara, que eram soldados nazistas que, embora com a queda de seu Führer, tinham escapado e continuavam a perseguir judeus. Não me surpreendera, por mais árduo que fosse para mim. Sempre tive em minha mente tal possibilidade.
Os passos daqueles algozes tamborilavam em minha mente prenunciando um inevitável fuzilamento.
Os ensinamentos que recebi durante o tempo em que passei no Orfanato Blumenthal associados ao meu instinto de sobrevivência foram a minha bússola na corrida desabalada empreendida pelos bosques de Heidelberg. O rumo que tomei foi o do rio Neckar. Era como se ouvisse Jacob nos dizendo: “lembrem-se dos amigos barqueiros do rio Neckar. São nossos irmãos”.
Foi a primeira vez em que me senti morta, mesmo respirando. Tornara-me a criatura mais egoísta do mundo. Como pude deixá-los lá? Jacob... Esther... Avigdor... A dor de perdê-los igualou-se ao patamar do sofrimento que enfrentei sem minha família biológica.
Era impossível ter noção das horas e dos dias padecendo de um remorso excruciante. Alimentava-me de ervas que apareciam pelo caminho. Mesmo sem espelho, presumi que estivesse adquirindo uma aparência repugnante, bem a calhar com os meus conflitos internos.
Estava bem próxima à margem do Neckar. Contudo, antes de “aparecer”, mais uma vez, lembrei-me de Jacob: “observem a forma de caminhar das pessoas. Soldados estão acostumados a dar passos firmes, desnecessariamente estrondosos e parecem estar sempre esperando um ataque. Em não havendo pessoas assim, vocês poderão buscar a ajuda de que necessitam”.
Era chegada a hora. Todos que estavam à margem do rio ocupavam-se com seus afazeres e não aparentavam qualquer preocupação. Caminhavam normalmente e alguns até arriscavam contar anedotas.
Agora, devia lembrar-me do nome de quem pediria auxílio, enquanto tentava retirar os musgos que insistiam em incorporar a minha indumentária. Adentrei o pequeno e velho trapiche, apinhado de homens transportando pesadas sacas de conteúdo indeterminado. O som de suas vozes misturava-se, fazendo com que nada fosse de fato entendido, porém um nome destacou-se por esse imenso barulho.
- Ferdinand! - Arrazoou um dos marinheiros para um velho corpulento de barba branca.
Logo me veio à lembrança deste americano, amigo e camarada de Jacob, que sempre que podia, realizava doações para o orfanato. Encontrei ali uma pessoa de confiança, e restou-me um filete de expectativas.
Contei a Ferdinand o que me ocorrera. O mesmo reagiu de forma desacreditada. Pude jurar que vi uma lágrima escorrer através de seu rosto másculo. Ele logo me apresentou uma solução. Aquele navio cargueiro, o qual lhe pertencia, tomaria rumo à Antuérpia, e continuando a rota, seguiria para a América. Não demorei muito a pensar. Desorientada e sem uma exata direção, concordei com ele para a fuga do perigo.
Os dias em alto mar pareciam mais longos e a condição precária do leito que me foi imposto deixava-me, frequentemente, nauseada. Não que fosse acostumada com luxo, porém, higiene era algo no mínimo fundamental. O vai e vem das ondas fez-me ressoar o meu triste e incontestável estado.
Ao sairmos de Antuérpia, foram necessários vinte longos dias para que pudéssemos finalmente ver terra. Todos ali reencontravam seus parentes. Beijos e sorrisos eram distribuídos por entre abraços calorosos. Fui atingida por uma onda de saudades, de um momento que nunca pude vivenciar. Senti falta de um aperto e alguém me esperando. É como se estivesse abandonada.
Enquanto Ferdinand dispensava a tripulação, também me observava de longe. Chamou-me para uma conversa, perguntando para onde pretendia seguir. Atormentada, sem conhecimento do local, acabei por não responder. Foi então que fez-me a irrecusável proposta de ser mais um membro de sua família. Então segui com ele para sua residência em Manhattan.
O triplex dos Collins localizava-se em uma cobertura na Park Avenue. Apesar de refinado, o ambiente me era aconchegante, assim como as pessoas que ali residiam, com exceção do jovem Peter, que me pareceu relutante fronte à ideia de compartilhar comigo a atenção de seus pais. Por gratidão, me ofereci para ajudar na organização da casa juntamente aos outros empregados. Meu pedido foi negado e minha nova família pôs me na condição de filha. Logo um quarto me foi cedido, com decoração que mesclava tons de rosa e branco. Ganhei várias roupas e meu guarda-roupa lotou de vestimentas requintadas. A minha nova vida parecia um sonho, bem à frente do meu áspero passado.
À medida que convivia ali, ganhava confiança de todos, menos do garoto. A repulsa de Peter por mim estava claramente expressa em seus atos, porém, havia algo nele que, involuntariamente, despertava o meu amor, amor este que ultrapassava as barreiras fraternas. Certo dia, cansada de ser ignorada, resolvi perguntar-lhe o que se passava em sua cabeça sobre minha pessoa e sem delongas ele respondeu:
Às vezes, odiar é mais fácil que amar. Quando odiamos não temos a falsa sensação de que teremos aquilo que nunca conseguiremos tocar.
Desde então, soube que a reciprocidade reinava em nossos sentimentos e não apenas eu o amava. Os dias se passaram e já não nos separávamos mais. A inocência prevalecia até então, quando nos desatinamos em um beijo. O seu toque causou-me uma sensação nunca vivenciada. Meus lábios foram envolvidos de tal forma, que foi quase impossível resistir ao momento. Quando dei por mim, o beijo já findara. A minha respiração, assim como meus batimentos cardíacos ficaram descompassados. E eu, que pensei nunca poder amar outro além de Avigdor, a quem jurei um eterno amor, estava abertamente apaixonada.
A proximidade entre nós fez com que nossos pais percebessem algo de diferente na nossa relação. De início, ficaram felizes, pois acreditaram que estávamos finalmente nos entendendo, porém, mais que isso, estávamos nos amando. Com esse último fato eles não concordavam, então evitávamos contatos mais íntimos perante eles.
As férias de verão chegaram ao fim. Peter foi obrigado a voltar à Yale, onde cursava o sexto ano de medicina e eu voltei ao meu último ano do High School. O período de aulas era o martírio. Nos encontrávamos vez ou outra em finais de semana. Dois dias pareciam curtos demais para saciar a minha sede por seus lábios e cada despedida me era dolorosa, como se fosse à última vez. A ideia de que ambos iríamos pertencer-nos daqui a seis meses, me felicitava, depois de tanto tempo, enfim, nos uniríamos para sempre.
Alguns anos após, resolvemos oficializar nossa relação e, literalmente, ultrapassarmos a barreira da irmandade. Nossos pais em nada poderiam mais nos impedir, e aos poucos foram se contentando com este fato. Depois que o Benjamin nasceu, então, os avós não queixaram-se mais. Se apegaram de tal forma àquela pequena criatura angelical que, sem esforço, conquistava até mesmo os corações dos mais rígidos. Cabelos loiros herdados de minha parte, formando um perfeito conjunto com os grandes olhos anilados e reluzentes herdados do pai.
Nossa vida tomaria um outro rumo, de acordo com nossos planos. Quando Benjamin já estava um pouco mais crescido, aos seis anos de idade, foi constatado que o pequeno padecia de esquizofrenia aguda. Primeiramente, acreditávamos ser apenas uma brincadeira infantil de amigos imaginários, entretanto, tal brincadeira tomou maiores proporções de modo que o garoto não desejasse mais frequentar à escola e nem divertir-se com os amigos.
Benjamin, a meu ver, tornara-se uma criança depressiva. Com frequência, flagrei-o chorando. O garoto alegava que tinha medo “deles”, mas que não sabia dizer quem eram eles. Em busca do tratamento, Peter, juntamente a outros psiquiatras concluíram que o diário e inevitável contato com outras crianças o ajudaria, reintegrando-o à sociedade. A escola seria a primeira opção. Contudo, Benjamin dizia que havia muito deles lá. A segunda opção seria dar-lhe um irmão, mas isso requeria tempo e tudo que eu desejava naquele momento era a cura do meu filho.
Imersa em pensamentos, veio-me a ideia de adotar um pupilo. Surgira no meu interior o imenso desejo, quase inexplicável, de voltar às minhas origens. Era como se lá estivesse a melhora de Benjamin. Peter e eu, antes mesmo do aparecimento da enfermidade de nosso filho, desejávamos criar uma organização filantrópica, em prol de crianças necessitadas, assim como eu fui um dia. A iniciativa em recriar o antigo orfanato Blumenthal foi de Peter. Meu marido, por certo, é um homem bastante benevolente. Largar suas abastadas raízes para reconstruir outras, não seria tarefa fácil.
Em pouco menos de dois meses, atravessamos o Atlântico carregando em nossas bolsas um turbilhão de projetos para o nosso futuro próximo.
Desperto, abro os olhos, já não vejo metade das coisas que aqui havia, no passado. Chego de uma longa viagem. Não só longa pela estrada distante, mas longa, também, pelos anos que nos separam.
O velho lustre da sala já não existe mais. Alguns nativos disseram-me que fora leiloado há alguns anos. Na lareira, por entre as cinzas de uma Torah, jazem os restos de uma chanukiah carbonizada.
Benjamin, assim que pôs os pés naquelas ruínas, foi surpreendido por uma dor de cabeça forte ao ponto de levá-lo ao estado de confusão mental. Peter já não sabia o que fazer, era mais expectador. Devia ser duro para um médico psiquiatra presenciar os transtornos mentais de um ente querido. Não eram raras às vezes em que o próprio Peter encontrava-se com as mãos atadas pelo misto das obrigações éticas e a lástima de ver seu filho sucumbindo à esquizofrenia.
Não fosse um único e incrível fato, a crise de Benjamin constaria do rol daquelas com as quais já estávamos habituados. Meu filho começou a falar palavras em alemão quando jamais me ouvira falar minha língua natal. Eram pedidos de socorro, palavras de desespero. Peter, desta vez, estava totalmente assombrado.
A voz de Benjamin variava de timbre, dos mais agudos aos graves. Como se estivesse encenando uma peça de teatro com personagens inúmeros. Enquanto meu filho contorcia-se, ocorreu-me a ideia de recitar uma prece hebraica que tinha aprendido quando criança: “Ana B'koach”. Foi quando o adverti:
- Benjamin, meu filho, tente prestar atenção nas palavras que a mamãe vai dizer e pense em Deus. “Nós te rogamos; com o poder de Tua Mão Direita, desmancha a atadura. Aceita o Canto da Tua Nação, exalta-nos e purifica-nos, ó Temido. Por favor, ó Poderoso, protege-os, como a pupila do olho aqueles que exijam a Tua Unificação. Abençoa-os, purifica-os, concede-lhes sempre Tua Justiça misericordiosa. Ó Santo, ó Protetor, com a abundancia da Tua Bondade, governa Tua congregação. Ó Único, ó Exaltado, verte-Te ao Teu povo e àqueles que se lembram de Tua Santidade. Aceita os nossos clamores, e ouve os nossos gritos, ó Tu, que sabes todos os mistérios. Bendito seja o Nome daquele cujo glorioso Reino é eterno”.
A prece foi como um bálsamo para o espírito do meu filho. Benjamin desmaiou nos braços do pai e foi voltando aos poucos.
Fizemos muitas perguntas, inclusive, se alguma vez tinha ouvido algum amigo da escola ou eu mesma lhe ensinando algo de alemão. Peter, como a maioria dos médicos, era inclinado ao ceticismo, mas não podia furtar-se de ficar perplexo diante dos acontecimentos presenciados naquele dia.
As perguntas de Peter começaram a deixar a criança impaciente, tanto quanto a mim. Assim, tive a intuição de indagar ao meu marido:
- Peter, será que você não vê que nosso filho é refém de uma enfermidade da alma? As doenças do espírito são as doenças do corpo! Aquelas vozes... Só agora reconheci... Eram as vozes dos meus irmãos do Orfanato Blumenthal e todo o alvoroço da invasão dos soldados nazistas. Não sei como chamar esse tipo de fenômeno nem sequer classificá-lo, mas nosso filho está sob a influência de todos aqueles que foram executados neste local.
Ao que Peter respondeu:
- Não diga tolices, Leah! O que nosso filho tem é esquizofrenia, por mais doloroso que isso nos possa parecer. Espíritos não voltam para assombrar os vivos, se é que ao menos existem!
As palavras de Peter deslizavam como lâminas em meu coração. Agora entendia como era difícil casar-se com alguém que não tenha a mesma crença que você ou pior, que seja cético ou ateu.
- Não trata-se de ver para crer, Peter. E sim, de crer para ver. - A resposta me ocorreu rapidamente, como se alguém soprasse em meu ouvido cada palavra.
Por alguns dias, Peter permaneceu pensativo, enquanto devorava livros em busca de uma doença onde os fenômenos apresentados por Benjamin, se encaixassem. Quanto à criança, encontrava-se em estado de choque; mais quieto do que costumava ser, silencioso e poucas vezes dormia bem. Seu pai receitara um antipsicótico, que certamente não funcionara bem no caso do garoto.
Por diversas vezes, tentei conversar com Benjamin a fim de entender o que se passava por seus pensamentos. Certa vez, veio a mim todo eufórico, chamando-me:
- Mamãe, vem cá! Vem logo! - Disse. Segui o som de sua voz, com passos céleres. O garoto estava no jardim, fitando com idolatria o caule de uma macieira. Àquela, tratava-se de minha árvore favorita. Aproximei-me na intenção de checar o que tanto admirava. Uma caligrafia fina revelava as seguintes palavras: “Meine unsterbliche Liebe, immer dein, ewig mein, ewig uns.”* O choque foi imediato, como aquilo seria possível? A frase que utilizava quando criança em minhas brincadeiras com Avigdor. Senti algo tapar a minha garganta e com um soluço, me derramei em lágrimas. Aquilo não poderia ser de outra época, afinal os riscos ainda eram verdes e úmidos de seivas.


Nota: * Frase de Beethoven, que significa: “Meu querido amor imortal, sempre teu, sempre minha, sempre nosso”.

Por que choras, mamãe? O meu amigo ruivo disse que ficaria feliz ao ver o que eu escrevi, mandado por ele.
Tive a certeza de que a enfermidade do meu filho não era de ordem psicológica, e sim espiritual. Como dizer a Peter? Como o fazer acreditar? Ao certo não sei.
Tentei que Peter realizasse a pausa do tratamento de Benjamin através de drogas, que pareciam, a meu ver, apenas aumentarem os fenômenos sobrenaturais para com o garoto. Peter, como médico, argumentou que a retirada dos antipsicóticos só pioraria seu estado. Qualquer coisa que eu lhe dissesse sobre o ocorrido, de nada serviria para derrubar as suas teses científicas.
Naquele vinte e oito de Maio, meu trigésimo aniversário, percebi que o tempo mudara bruscamente. Os bosques estavam encobertos por densas camadas de brumas. Tive o deleite de ao despertar, deparar-me com um punhado de flores de maio azuis que exalavam um doce e agradável perfume, ao qual reconheci ser do jardim. Juntamente as flores, encontrava-se um objeto reluzente e prateado. Ao abri-lo, senti meu coração saltar e o temor rastejou em minha direção. Lembro-me bem de ter sido da mesma forma presenteada em meu aniversário de treze anos. Avigdor, com a ameaça de uma iminente adoção, deu-me àquele relicário, que herdara de seus pais biológicos, para que mesmo distante, eu pudesse lembrar dele.
Os gritos de Peter por meu nome, fizeram-me saltar da cama e descer às pressas os grandes lances de escada. A cena era desesperadora: meu marido ajoelhando-se ao chão, enquanto tentava conter os impulsos convulsos de Benjamin, em seus fortes braços.
Fiquei estática perante o último degrau. Por um minuto, a convulsão cessara e o garoto dirigiu-me um olhar maligno, que exalava o mais puro ódio.
- E eu que pensei que seria para sempre. Em verdade, o para sempre, sempre acaba. - A voz era autoritária, quase imponente e não pertencia a Benjamin.
O corpo do menino parecia relutar entre duas forças. Ora uma que me parecia ser o verdadeiro Benjamin, tomava conta do corpo, ora uma força estranha o possuía. Derrepente ouvi-lo me chamando:
- Mamãe, não me deixe ir. - A voz era infantil, em uma profunda lamúria e desespero. Não havia nada que eu, de fato, pudesse fazer. Minhas pernas cederam, caindo também de joelhos. Lágrimas ofuscaram os meus instintos, talvez tenha esquecido até de respirar. Peter abraçava o garoto. Em seu rosto era marcado por uma expressão de dor.
- Não te recordas meu querido amor imortal? Sempre teu, sempre minha, sempre nosso! A nossa mais recitada frase! - O seu tom era grave e de certo modo ferino. Reconheci facilmente, cabia à Avigdor.
- Papai... - A palavra foi seguida de um suspiro demorado. Seu pequeno corpo sucumbiu aos braços de Peter. Não aguentei e deixei que um alto grito escapasse de minha garganta. Sem acreditar no que parecia ter ocorrido, Peter sacudiu o corpo do garoto, tentando acordá-lo, mas de nada adiantou.
No mesmo instante, através da claraboia existente no teto da sala, pude ver o tempo abrir-se. A luz solar decaiu sobre Benjamin, quase como um holofote cintilante. Era um fenômeno estranho, a chuva lá fora começava a cair. Os céus, assim como eu, choravam. Porém, os céus choravam por nós, que sofríamos pela perda do nosso garoto, e não propriamente por sua morte, pois apenas a matéria de Benjamin foi a óbito. O essencial, a alma, continua a viver, em meio à luz.
É certo que como mãe, não seria fácil aceitar a partida de meu filho mesmo sabendo que seu espírito permanece em paz. Peter teve um pouco mais de compreensão, acreditando que Benjamin fora um anjo que veio à Terra para nos ensinar sobre a vida e também confirmar a existência de um ser supremo.
Hoje, o orfanato encontra-se reconstituído. Em homenagem ao nosso anjinho, recebeu um novo nome: Benjamin. Convivemos com várias crianças, cuidamos delas como filhas, contudo, o vazio que meu filho deixou não me parece preenchível. Por mais que tenha partido, ainda posso senti-lo por entre as flores azuis em nossos jardins e posso ouvir o seu riso infantil juntamente à brisa de verão, mas ver, só é possível com olhos de lince. É preciso crer, ser forte e principalmente ter uma visão muito apurada, frente à realidade para denotar o que muitos não enxergam.


Leah Steinberg

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

Lies, games and love.




As suas palavras são doces como venenos. Devo tomá-las e morrer em seus braços? Ou simplesmente jogá-las ao vento? O seu amor é uma mentira, uma anedota, a qual minha vaidade almeja. Essa sua indecisão me mata, me corrói. Eu preciso de algo concreto, não posso mais viver flutuando no meio desse oceano infinito.
O que você quer de mim? Por favor, responda. Você quer minhas lágrimas, o meu coração, a minha respiração, a minha vida? Já te pertence. A única coisa que te peço agora é: Não faça de mim mais um de seus jogos de amor.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS